Pois é, agora não tem mais jeito: tô condenado a vagar eternamente por
essa Terra cheia de malucos. Mas isso até que não é tão ruim e tem lá as suas
compensações: a cerveja aqui é boa, já me habituei às comidas estranhas e as mulheres,
quando usam chicotes, quase que me devolvem ao Céu. Difícil mesmo é quando me botam pra entrevistar gente do
tipo desse Claudio Parreira, que se diz Vigarista. Ainda bem que não tô nessa
sozinho. Vamos, então, direto ao assunto:
GABRIEL — Tô meio confuso e gostaria que você me esclarecesse uma coisa: até onde eu sei, sou obra do Criador. Mas agora tão dizendo por aí que você me criou. Como é isso?
PARREIRA — O arcanjo Gabriel, se é
que ele existe mesmo, sim, foi coisa do Criador, do Supremo. Já você, o anjo
Gabriel, é fruto da minha imaginação. Sou, portanto, o seu criador. Por isso,
ajoelha e me adora!
GABRIEL — Vai à merda!
PARREIRA — Perfeitamente. Quer saber
algo mais?
GABRIEL — Você escreveu um livro que
mistura humor, putaria e reflexão filosófica. Não é uma combinação um tanto
inusitada?
PARREIRA — Você sobreviveu, não é? E
curtiu, que eu sei. Não tem nada de inusitado ou incomum nisso. É apenas
literatura.
EMBAIXADOR — Literatura... Praga dos
infernos!
PARREIRA — Tá reclamando do quê? Foi
a literatura que te trouxe ao mundo, à luz. Imortalizei você nas páginas de um
livro e na imaginação dos leitores.
EMBAIXADOR — Mas me esculachou! Todos
esses leitores aí pensam que eu não passo de um bebum delirante.
PARREIRA — Embora o livro se chame Gabriel, você é um dos personagens mais
interessantes da trama, tanto que deixei pra você a conclusão dessa porra toda.
Brilhante, Embaixador, você é brilhante!
MARIA — Vocês ficam aí falando,
falando, mas esquecem de que, sem mim, nada disso teria sido possível. Não fui,
afinal, a escolhida?
PARREIRA — Você é a prova de que nem
sempre as escolhas do Supremo são sensatas.
MARIA — Seu... seu... vigarista!
PARREIRA — Obrigado, querida.
GABRIEL — Vocês estão desviando do
foco. Isso aqui é uma entrevista, porra!
PARREIRA — Então pergunta, carái!
GABRIEL — O padre Gerôncio é uma
figura muito controvertida no meu romance, quer dizer, no seu romance. O que
você quis dizer, ou provar, com um padre ateu?
PARREIRA — O Gerôncio não é ateu. Ele
é à-toa, um sujeito que, mesmo tendo se dedicado ao sacerdócio, não se deixou
contaminar pela baboseira católica.
GABRIEL — Você não tem medo de tocar
em assuntos tão complexos? Não teme represálias por parte da Igreja? Em outros
tempos, você seria considerado herege.
PARREIRA — Eu sou um sujeito
contemporâneo que lida com questões contemporâneas. A discussão que se
desenvolve em Gabriel é atualíssima.
Se a Igreja ainda está na Idade Média, isso é um problema dela. E acho também
que essa é uma das funções principais da literatura: incomodar. Fazer pensar.
Esse é o meu foco.
EMBAIXADOR — Você pode nos dizer como
é o seu fazer literário, como escreve, se tem algum ritual?
PARREIRA — Gosto de escrever de
manhã, com uma xícara de café e cigarros à mão. E escrevo de cueca ou pelado,
dependendo do calor.
VERMELHO — Qui diliça...!
GABRIEL — Errrrr, o que é que você
acha de ser entrevistado pelos seus próprios personagens?
PARREIRA — Tô gostando dessa
conversa. Isso prova que os personagens acabam ganhando, mesmo, vida própria,
independente da minha opinião. Vocês todos agora estão no mundo, já não me
pertencem mais.
GABRIEL — Como foi o processo de
edição?
PARREIRA — Dei muita sorte: assim que
concluí o livro, encontrei a Editora Draco. Arrisquei mandar os originais e
funcionou. O que aconteceu daí pra frente vocês sabem tão bem quanto eu.
EMBAIXADOR — Mas os leitores não
sabem...
PARREIRA — Explicar aqui todo o
processo editorial seria muito cansativo, mas posso adiantar que tudo correu da
melhor maneira possível. E o resultado disso tudo já não me cabe mais avaliar. Isso
agora é com os leitores.
GABRIEL — Você parece que tá fugindo
do assunto.
PARREIRA — E você parece questionador
demais. Que saco!
GABRIEL — Não foi você que me criou
assim? Então não reclama, porra!
PARREIRA —...
GABRIEL — Tem algum conselho, alguma
dica para os escritores iniciantes?
PARREIRA — Apenas isso: escrevam!
GABRIEL — Uma pergunta que muita gente
deve fazer por aí: por que Vigarista?
PARREIRA — Viver de literatura no
Brasil é impossível. E escrever, como costumo dizer, é um ofício de trevas:
você vive às escuras, nunca sabe exatamente o que faz — e se o que faz vai
virar alguma coisa concreta. Por isso a vigarice: a gente vive de bico,
pequenos trabalhos, ou trabalhos que nada têm que ver com a nossa verdadeira
vocação literária. Eu preciso pagar a porra da conta de luz, o aluguel. A
literatura é uma atividade quase clandestina. Só mesmo sendo um vigarista pra
dar conta disso tudo e ainda escrever satisfatoriamente.
GABRIEL — São suas últimas palavras?
PARREIRA — Não, não mesmo. Ainda
pretendo falar muito e escrever muito mais.
VERMELHO — Essa entrevista já tá
enchendo o saco. Que inferno!
EMBAIXADOR — Disso você entende bem,
né?
MARIA — Querem parar com essa briga?
Que falta de respeito com os leitores!
PARREIRA — Só queria saber uma coisa:
quem foi o cretino que te encomendou essa entrevista?
GABRIEL — Um sujeito desclassificado,
um tal de... Tavares, acho.
PARREIRA — Rochett Tavares?
GABRIEL — Isso! Esse mesmo.
PARREIRA — Só mesmo ele pra inventar
esse tipo de maluquice. Filodaputa!
GABRIEL — Respeita o homem!
PARREIRA — Vai à merda!
Como vocês puderam ler, a partir deste ponto ficou impossível prosseguir
com a entrevista. Esse Parreira aí não vale nada, é um vigarista mesmo — da
pior espécie. Sua única virtude, talvez, tenha sido escrever o livro que leva o
meu nome. Mas não confiem nele: gente assim tá sempre tramando alguma coisa,
escondendo um texto na manga, conspirando contra a moral e os bons costumes.
Vai ver é por isso que gosto tanto do cara.
3 comentários:
Gostei. Mas esse Parreira parece que não bate bem da bola...
hahahahaah!
Adorei! Entrevista super criativa!
Nossa, estou aqui imaginando o "confronto" das palavras, muito legal a entrevista. "Por isso, ajoelha e me adora!" X "Vai à merda!", tem como não amar? ^^
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