O Pai das Lendas

O sol mergulha em seu leito rubro no horizonte… Os derradeiros
raios de seu manto púrpura são engolidos pela escuridão crescente… Não preciso vislumbrar o crepúsculo para saber que a noite se ergue absoluta.

Desperto abruptamente, como se arrebatado de um longo pesadelo de horror e estagnação… Sinto nacos de carne violácea recobrirem lentamente membros enegrecidos… Fibras e músculos rangem à medida que um doloroso estalar agita, frenético, ossos tão antigos quanto o tempo. Um odor pútrido (e familiar) toma o ambiente, anunciando que, em breve, estarei apto a ganhar as trevas que abraçam o mundo.

Tão silencioso… Uma quietude opressiva distende sua viscosidade com tentáculos tão firmes quanto tenazes.
Jamais consegui adaptar-me. Jamais imaginei que sua falta tomaria uma parcela valiosa de minha… consciência.

Outrora me lançara à escuridão, absoluto, tomando suas vidas como o predador que… que… Muito tempo
transcorrera desde que o último deles caminhara sobre a face de um mundo cuja propriedade outorgaram a si
mesmos.

Abandono o leito no qual refugiara-me após uma noite de contemplação — um sinônimo que encontrei para
“lamento” — vagando através da câmara onde, há muito, erigi o altar de minhas recordações. Meses… anos… dias… Tudo isso perdera o sentido…

Todos aqueles nomes com os quais fui (e os meus iguais) identificado parecem, agora, parte de um sonho distante. Durante muito tempo, não entendi sua necessidade de explicar minha origem ou o porquê de minha existência… Apenas circulei entre eles desde antes da memória, como um deus, uma sombra, o mal… Como o horror a vagar na escuridão em e entre seus pesadelos… Em e entre seus medos… Fui herói, fui um mito, fui perseguido… Até mesmo por um tempo esquecido…

Mesmo após eras, a natureza de minha criação ainda é um mistério nebuloso. Depois de séculos (ou seriam
milênios?) parei de me questionar sobre minha bênção ou maldição. Resignei-me em aceitar aquilo que me foi oferecido. Resignei-me em abraçar aquilo que me foi imposto.

Tomei-os para mim como crianças a seus brinquedos… Incuti o medo em seus corações… Alimentei-me do horror que instilava em seu espírito… E agora… agora… Dirijo-me ao portal de acesso à minha alcova. Aço trabalhado por mãos que, há muito, desapareceram.

Ainda fico extasiado ao vislumbrar os entalhes em forma de crânios nas extremidades do umbral, ligados por chamas a envolver ossos da mais variada sorte brotando em relevo da superfície laminada.

Houve uma época na qual minha raça finalmente abandonou as trevas pútridas às quais fora relegada, assumindo as rédeas desse mundo. Houve uma época… Arrasto-me, silencioso, ao salão contíguo a meus aposentos. Uma vasta biblioteca toma as paredes de minha residência. Livros e mídias da mais variada ordem acumulam todo o conhecimento de uma raça extinta. Em algumas noites, distraio-me com os antigos volumes à minha disposição (há muito tempo, desisti de reparar os geradores de minha casa; desse modo, tudo relacionado à tecnologia foi abandonado).

No trajeto a uma das estantes, fito o reflexo púrpura de minhas órbitas num espelho de prata polida localizado próximo à urna onde… onde… A memória de quando meus olhos apenas podiam enxergar o visível diverte-me como uma anedota empoeirada.

Houve um tempo em que fui o pai e irmão; o líder e guia de muitos como eu. De muitos que vieram de mim a
este mundo frágil. Percebo-me folheando um antiquíssimo volume de “A Origem das Espécies”… Imagino se o autor suprimira a existência de meu povo de forma arbitrária ou porque, simplesmente, ainda estávamos recobertos pelo manto das lendas.

Ainda com o tomo em minhas mãos, deixo o recinto, tomando a escadaria de marfim polido à esquerda, rumo ao pavimento inferior de minha fortaleza. Agrada-me o som de meus passos contra o assoalho, agrada-me sentir a poeira de séculos erguer-se como pólen maldito vomitado através do pranto de flores mortas. Sou o senhor absoluto de um reino que se estende para além de meus sentidos. O governante de um feudo morto, um feudo sem súditos ou honrarias.

Os portais de meu castelo há muito não são fechados. Não há razão para proteger-me de cadáveres imóveis ou de espíritos ainda presos a este plano. O que outrora ostentou todo o orgulho, toda a vaidade por ser o covil dos mais… mais… Estanco minha marcha ao vislumbrar os pequenos olhos brilhantes a zombar de minha solidão. Haveria outros como eu nos mundos a rodeá-los ou estarei agrilhoado a uma tétrica ironia?

O vento açoita minha carcaça quando deixo para trás uma construção cuja idade não me atrevo a estimar. A areia é lançada contra os obstáculos à sua passagem com incrível velocidade, devorando pele e músculos de um corpo, a priori, desprotegido. Um corpo, em uma primeira leitura, à mercê de sua fúria.

Quase instantaneamente, reponho o que o inimigo invisível houvera tomado no agonizante ciclo de todas as
noites em que resolvo aventurar-me ao sabor dos elementos. Aboli o uso de trajes desde que o último deles se fora… Não há mais a necessidade, a vontade em assemelhar-me ou manter algum resquício dos traços que mais me aproximavam a eles.

Fito a areia cobrir e revelar em sua constante revolução partes de sua derradeira cidade. O apocalipse, ragnarok, ou como suas inúmeras culturas o chamavam, abateu-se sobre sua raça quando ainda olhavam as estrelas com um misto de curiosidade e temor.

Sinto fome… Uma necessidade avassaladora por fluido a revolver-se em meu íntimo desde o momento no qual me entendi sob os caprichos de minha… condição. Quando jovem, optei por saciá-la com o sangue de animais da mais variada ordem apenas para perceber, algum tempo depois, que o gênero humano seria o único capaz de prover um sustento adequado. Não havia um mestre. Não havia orientações a seguir. Não havia o livro. Como uma criança faminta, vaguei por este mundo fazendo dele meu professor e aprendiz. Descobri da pior forma possível o poder negativo que o sol detém sobre minha raça. Entendi que a escassez de alimentos poderia enlouquecer-nos e a proximidade com outros de minha espécie causava uma pequena dor, um pequeno incômodo na base da nuca.

O pó de seus ossos mesclam-se aos do que consideramos apenas alimento, viajando através do vácuo estagnado no qual a atmosfera transubstanciara-se após sua última e mais devastadora guerra.

Recordo-me da criação de meu primeiro filho (milênios atrás) numa China ainda governada por um poder descentralizado onde tribos rivais guerreavam entre si. Lao Tsé, um valoroso guerreiro cuja coragem guiara sua espada fundo em meu ventre.

Em minha arrogância, removi o instrumento, certo de que o puniria por sua petulância em crer ser capaz de
encerrar o profano a animar o esquife de carne onde a consciência deste flagelo jaz amaldiçoada.

A lâmina penetrou fundo em sua carcaça. Girei duas, três vezes antes de retirá-la e lamber a essência cujo sabor de ferro e flores mortas escorria lentamente de sua face prateada. Três dias depois do combate, recebi-o em minha casa na época. Irracional, faminto, voraz. Dei a meu primogênito um conhecimento que dominara através do empirismo, orientando-o em sua nova realidade.

O primeiro demônio (como o chamaram após minha partida do Oriente) reinou absoluto nas trevas da Ásia até que… que…

O gado contava histórias. Eu fui considerado o Senhor da Morte e do fim sem esperança; genitor da besta que iria assombrá-los nas eras adiante. Caminhei pelo Egito, Babilônia e Suméria. Vi o gelo derreter e os mares encobrirem continentes.

Fui o rei de uma corte invisível, ganhando nomes tão variados quanto os astros no universo… Strigoi, Vrikolaka, Nosferatu, Rakshasa, Vampyr, Damphyr, Vlokoslak e Incubo… Por um tempo, foi extasiante ver meus filhos e filhas dispersarem-se para além dos domínios conhecidos, estabelecendo-se nas raízes de toda a sociedade deles.

Abstraio-me por horas a fio observando a paisagem hostil a meu redor, até pousar meus olhos numa página em particular do volume em minhas mãos: “Da Adaptabilidade”. A memória voa, sem controle, até chegar a uma floresta tropical longínqua, onde comecei minha jornada como estou agora… Despertei nu, na escuridão, aturdido por uma miríade de sons e aromas que jamais sentira em minha terra natal.

Terra natal… Mesmo após o tempo perder seu significado não consigo recordar-me. Apenas um sentimento distante. Uma espécie de nostalgia quando… quando… Um animal que eu jamais avistara antes saltou sobre
mim… Rugindo, feroz… olhos esmeralda faiscando, presas marfim arreganhadas. Com o tempo, descobri que a presença de minha raça causa entre as feras indescritível espécie. No momento, não soube como chamaria aquela besta… Lutei com ela e senti o poder correndo em meu corpo pela primeira vez… Nos mordemos, nos arranhamos, dilaceramos a carne de nossos corpos até que… que… o animal se lançou
num último e desesperado ataque, rechaçado por mãos tão vigorosas quanto tenazes…

A morte silenciosa (como os povos da selva o chamavam) tombou imóvel ao meu lado. O cheiro de sangue ainda quente invadiu minhas narinas… Por alguns instantes, esqueci daquilo que me fazia um homem e banqueteei-me nos despojos de meu oponente.

Algo me impeliu a esfolar o animal e vestir sua pele… Jamais soube se por um hábito remanescente de uma vida anterior ou pelo prazer de ostentar o troféu de minha vitória. Os homens que naquela região habitavam chamaram-me de Rakshasa (uma criatura metade homem, metade tigre); traziam-me oferendas vivas regadas a danças; davam-me suas virgens implorando para que eu lhes entregasse minha semente… Foi quando descobri ser incapaz de fertilizar um ser. Seja ele de minha própria espécie ou de qualquer outra.

Muitos ergueram suas mãos contra os meus. Em diversos lugares, caçavam-nos como uma praga… Culpavam-nos pelos males a afligi-los e inúmeros ritos foram criados objetivando manter-nos afastados. Pobres tolos… Algumas dessas coisas só afetavam aqueles suscetíveis à influência de tais elementos em sua cultura. Cruzes, alho, prata, madeira, grãos de arroz e orações… Um de meus filhos no Ocidente jamais iria deter-se ante uma casa para contar os grãos em sua porta, assim como os tocados por minha mão na Ásia
jamais estancariam ante uma cruz ou água corrente.

Uma vez segui um homem chamado Nazareno, imaginando ser ele o portador da redenção para meu espírito… A eternidade pode tornar-se um fardo, caso você não possua um foco superior… Fiz o possível para impedir sua execução, mas ele… ele… Depois de sua expiação, retirei-me do convívio com os meus e o gado por muito tempo… Forcei-me a um sono profundo, no qual meditei acerca de quem era e do meu lugar neste mundo.

Abandono meu assento e caminho entre as ruínas do que eles chamavam “estrada”, rumo ao marco final de sua civilização…

Após a guerra mais violenta dentre todas, apenas um punhado deles e muitos dos meus sobreviveram… Adverti meus filhos quanto a tomar dos pobres amaldiçoados somente o bastante para garantir a sobrevivência… Alguns deviam sempre permanecer vivos para reproduzir, pois, sem reposição, logo teríamos que ceder ao canibalismo…

Não me deram ouvidos… Fui obrigado a beber de meus descendentes e a carregar o fardo de ser o alpha e o omega, o princípio e o fim da minha própria raça… O homem regredira a um estado semiprimitivo, quase como o fora na aurora de minha existência.

Todavia, sua sede por poder, pela dominação, pelo conflito levou-os a uma nova guerra, onde armas antigas foram encontradas e utilizadas por mãos tão inaptas quanto as de seus ancestrais… Impotente, vi o homem incendiar sua atmosfera, consumir os oceanos, o que restara das espécies animais e vegetais. Vi o homem consumir a si mesmo em uma fome superior à minha própria… Como desejei ter-me ido com eles… Como desejei ter…

A eternidade é um fardo… Algo me impede de… sempre me impediu… Jamais, mesmo que assim o quisesse, consegui pôr fim à minha existência… Uma voz, um chamado sempre sussurrou em meu íntimo,
impelindo-me a continuar, a prosseguir, mesmo que para apenas chorar lágrimas impossíveis por um mundo tão morto quanto eu.